sábado, 12 de março de 2011

“Nada mais hipócrita do que a eliminação da hipocrisia”

Já aqui foi questionada a veracidade das acções humanas. Mas o que é isso de veracidade?

Num mundo com necessidades pragmáticas reais, não deveremos preocupar-nos mais com o resultado? Na minha esfera pessoal, rejeito tal ideia e aceito todas as desvantagens que isso me possa trazer, convictamente. Já num plano sócio-global, tenho de reponderar os pensamentos.

Não aceitei uma total abdicação da esperança e mantenho uma saudável ingenuidade, quero apenas aliá-las a soluções concretas. No fundo, já me convenci a mim mesma das exigências e mudanças que preconizo, interessa agora saber como incuti-las em mentes diferentes. Defender os interesses pessoais está-nos no sangue, não corrupto, mas animal. Distinção entre interesses positivos e negativos até é fazível, mas a linha é ténue e facilmente modificável, sendo certo que todos reagimos a impulsos muito variáveis. Abraçando a ideia de evolução para a sobrevivência, hoje cabe-nos ser espertos - há que convencer os “maus” daquilo que é “bom” aliciando-os com um ganho.

Exemplificativamente, é irrisório achar que a actividade económica se desenvolve pelas necessidades mais banais de alimentação, vestuário e habitação. De facto, a utilidade social de uma actuação é, tendencialmente, distinta daquilo que a impulsiona e a mantém activa. O mesmo se aplica ao nobre voluntariado, às condutas políticas, enfim, aos campos que exigem institucionalização de algum tipo para se desenvolverem.

Nada de aclamações apoteóticas da corrupção, qual elemento existencial. Na utopia temos apenas de elevar o grau de praticabilidade e lidar com determinados “princípios” (ou falta deles), sem aceitar o satus quo. Talvez mudar o sistema a partir do interior seja isso mesmo.

Hipocrisia será não aprender a viver com a hipocrisia da maioria das pessoas, mais ainda quando detentores do poder. Pelo menos até à grande descoberta – um sistema civilizacional melhor do que a democracia. Em sonhos de sono pesado continuarei, ainda assim, numa realidade de veracidade.

Certamente não foi nisto que Nietzsche pensou.

Como gosto da arte imaginativa de interpretar.

2 comentários:

  1. Acredito perfeitamente e sem questionar uma milésima de palavra ou letra o teu segundo parágrafo.
    Mas, curioso e interessante seria perguntar àqueles que "à rasca" se manifestaram por todo o país hoje, se seriam capazes em situações mais ou menos dramáticas, mais ou menos frustrantes, continuar uma defesa acérrima (se é que alguma vez o fizeram) desse, eu diria, basilar princípio de cidadania?

    Por outro lado, o ser animal que vive dentro de nós e que de forma indubitável constrói sociedade não pode, nem deve, ser desculpa para qualquer "evolução para a sobrevivência", porque se assim for... resignemo-nos, conformemo-nos e baixemos os braços e tal status quo manter-se-á por muitos e maus anos!
    Não sou ingénuo! Sei que o “ sangue animal” nos domina mais vezes, do que o inverso. Contudo, gostaria mais de me comparar (e não porque o seja em absoluto, mas porque o desejasse ser) ao “animal político” Aristotélico, aquele que age na polis, que sociabiliza, “que tem o senso do bom e do mau, do justo e do injusto”, que faz opções, que intervém, criador de leis, alicerces de coexistência, formas de governar e que, posteriormente, acarreta com as demais consequências.

    Aguardemos essa "grande descoberta"... até lá gerir formas de estar e ser, princípios e interesses, meios e resultados… uns com sonos mais pesados, outros mais leves, deslindando a nossa natureza humana!

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  2. Hahah, “a arte imaginativa de interpretar”, já em “The Origin of Truth” Merleau-Ponty falava dessa questão. De como a escrita é inaugural no sentido puro da palavra (nas palavras de Derrida) e, exactamente por isso tem a sua intrepretação um carácter imprevisível - não sendo possível saber à priori para onde, ou por onde, se percipitará o seu significado. Ceramente que Nietzsche teria consciência disso!

    Há quem diga que quando os príncipios se vêm ameaçados pelo sistema (já que se fala em sistema ?), para não se ser hipócrita a única solução é um afastamento total do mesmo. No entanto, e já que estamos em Nietzsche, segundo ele as convicções são inimigos da verdade mais perigosos que as mentiras. Mais uma vez, porque “a verdade é uma espécie de erro” que nos faz o seu jeito, e como não só a escrita, mas também a reflexão é inaugural, devemos ter cuidado para não cair na tirania da firmeza de convicções. Sobre pena de transformar a utopia numa utopia para um só e distopia para os restantes.

    Parece-me, que talvez por isso, nada mais hipócrita do que a eliminação da hipocrisia.

    Encontro-me portanto divido entre o niilismo de Nietzche e a certeza de Henry David Thoreau. Acabo por me reconfortar, dizendo que a compreensão é uma virtude, e não é mostra de compreensão tolerar as hipocrisias dos outros ? Por outro lado, fico-me na minha com algum desgarramento (e ingenuidade), na esperança de que a verdade de só um, terá muitas vezes mais peso que a loucura de muitos.

    Finalmente senso no contra-senso!

    Não bastará, para combater (não eliminar) a hipocrisia, este lavar de mãos daquilo com que não concordo ? Mais que lavar as mãos, levantar a voz, mas sem ferir os que ainda não acordaram. Pois dado tudo isto, apenas se firma a crença de que a revolução, real revolução, acontece no coração dos homens primeiro, uma e outra vez, de cada vez e, só depois, no coração da civilização.

    Esquecendo agora a hipocrisia, este conflito de valores é que certamente não deve ser eliminado, pois é algo de precioso, e talvez seja o que diferencia os mais dos menos hipócritas.

    Ricardo Cabrita

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